Você se considera uma pessoa racista? Já parou para pensar nisso? Pois é, o tema racismo ganhou as ruas em 2020 com uma força avassaladora e o movimento “Black lives matter” alastrou-se por vários países, num grito uníssono pela igualdade racial. Não sei com você, mas esses acontecimentos mexeram bastante comigo e me levaram a questionar seriamente os meus conceitos sobre o assunto.
Há alguns anos, se alguém me dissesse que eu era racista eu ficaria indignada e responderia: “Eu, racista? Você não sabe do que está falando! A minha família é uma miscelânea de negros, índios e europeus. O meu avô paterno era pardo, sua avó uma índia pega a laço no mato, o seu pai um negro. Além disso, como você pode me chamar de racista, se eu mesma sou morena de cabelos crespos?”
Contudo, o tempo provou, infelizmente, que eu estava enganada.
O racismo oculto
Sem ter consciência, a minha educação deixou marcas em mim. Pois, mesmo sendo filha desta mistura de raças, sempre senti na pele o racismo oculto incutido nas mentes dos meus familiares. A minha avó, por exemplo, costumava falar, entusiasmada, das moças bonitas, que pareciam umas bonecas, de tão branquinhas que eram, com seus cabelos lisos como seda. Quase todo dia ela me dizia: “pintia esse cabelo minina! Cê tá parecendo uma sussarana”; ou “passa óleo de galinha no cabelo dessa minina, pra vê se ele miora”. Foi assim que dolorosamente, desde muito pequena, aprendi que eu não me enquadrava nos padrões de beleza da sociedade, que eu era feia. Na escola me chamavam de “neguinha”.
Conforme eu crescia, esses adjetivos que usavam para descrever a minha aparência começaram a me incomodar profundamente. Eu não queria ser chamada de neguinha, nem de pretinha, mas sim de morena. Desejava que meus cabelos fossem descritos como encaracolados, não crespos.
Você percebe? Eu queria me encaixar em padrões que me tornassem mais branca. Pior, inconscientemente, eu me esforçava ao máximo para que o mundo lá fora, realmente, me enxergasse assim. Visto que as minhas experiências me mostravam que existia uma hierarquia clara entre as pessoas. Uma hierarquia regida por cor de pele e tipo de cabelo: quanto mais brancas fossem e mais lisos seus cabelos, superiores eram elas.
Pois bem, como eu não queria ser considerada preta, eu procurava adjetivos que diminuíssem a minha pretitude.
A segregação racial
“A segregação racial parte do pressuposto de que uma raça é superior à outra.”
É bem triste ver como a nossa própria cultura nos “educa” a dividirmos as pessoas por raças. Não é mesmo?
É como, se de certa forma, existisse um tribunal de justiça que impõe a sua autoridade sobre os humanos determinando que uma genealogia é superior à outra. Dando a uma, o direito a escolas particulares, cargos de prestígio, admiração, reconhecimento e privilégios, enquanto a outra, precisa se contentar com estudos de segunda classe, desprezo e cargos subalternos. Uma etnia tem direito de viver com dignidade, a outra não. Bem desumano isso. Você não acha?
E o mais traiçoeiro desse processo de seleção, é que ele é invisível. Nos tornamos racistas sem perceber. Um dia ouvimos uma piada de negro numa roda de amigos e achamos engraçada. Noutro vemos uma pessoa negra sendo maltratada ou humilhada na rua, só por ser negra. Em outro, nós mesmos somos discriminados na escola pela nossa cor de pele. Assim seguimos levando e internalizando esses “pré-conceitos” e, de repente, lá estamos nós fazendo o mesmo, como se discriminar fosse algo super natural.
O meu eu racista
Foi só quando me mudei para a Alemanha que me dei conta da minha tendência de tratar as pessoas negras e “feias” com descaso. De verdade, eu não me considerava uma pessoa racista. Eu nem pensava que isso tivesse algo a ver comigo.
Foi depois de muito tempo questionando meus próprios costumes, que cheguei à conclusão de que sim, eu era racista. Eu era mais um produto da cultura brasileira, cujas raízes estão profundamente fincadas na opressão e desumanização dos escravos trazidos da África.
E quer saber? A ideia da superioridade dos brancos me foi transmitida, não só pela minha família, mas também nos bancos escolares. Minha família, meus professores e eu, apenas replicávamos os padrões de comportamento arraigados, há centenas de anos, na nossa sociedade.
A nossa capacidade de aprender e mudar
Fato é, que aquela minha constatação de que eu era racista, me deixou perplexa e despertou em mim a curiosidade de entender as causas e consequências do racismo. Com isso comecei a me interessar, cada vez mais, pelos discursos das pessoas negras. Eu queria saber de suas experiências, entender os seus motivos e conhecer suas mensagens para o mundo. Nessa minha busca descobri o trabalho da brilhante filósofa e ativista negra, Djamila Ribeiro, a qual tive o prazer de conhecer pessoalmente em 2019 aqui em Frankfurt, no lançamento do seu livro “Lugar de fala”.
Sua convicção, assim como sua segurança e sabedoria impressionam. A sua fala é mansa, mas a sua mensagem tem uma força transformadora. É praticamente impossível não viajar com ela nos seus argumentos intelectualizados, embasados em fatos históricos, mostrando a existência de um discurso social que legitima a opressão, a marginalização e justifica a discriminação. Principalmente, contra as mulheres negras – já que elas, por serem mulheres, têm ainda menos voz do que os homens negros. Não é à-toa que a Djamila é uma das porta-vozes negras mais reconhecidas no Brasil e foi eleita, pela BBC, como uma das cem mulheres mais influentes do mundo.
Pelas minhas vivências, por ver pessoas como a Djamila trabalhando, incansavelmente, em prol de uma sociedade igualitária, hoje, me sinto no dever de contribuir para a conscientização das pessoas sobre o tema.
Mesmo com as crenças de desigualdade que herdei, eu acredito que todos os seres humanos têm direitos iguais, independentemente de sua raça, religião, cor ou gênero. Além do que eu sei que os maus-tratos sofridos pelos negros, dia após dia, pode se transformar, mais cedo ou mais tarde, em uma bomba prestes a explodir e esparramar violência a qualquer hora.
Enfim, por tudo isso e por querer ver meus filhos crescerem em uma sociedade mais justa e pacífica, onde as pessoas são tratadas de igual para igual, decidi abraçar essa causa.
E você, se considera racista ou não? Conte-me nos comentários, vou adorar conversar com você sobre isso.